Eram dez horas da manhã quando recebi uma mensagem dela. Pedia-me, por favor, se lhe podia ligar que estava sem saldo. Estava à porta de casa, no corredor de acesso ao piso. A chave que tinha não abria essa porta. Pois não…tínhamo-nos esquecido de que essa porta abria com uma chave diferente. Há cerca de 3 semanas atrás tínhamos mandado fazer uma cópia para ela, mas ela já faltava há mais de um mês e não nos lembramos de lha entregar. Normalmente deixava essa porta aberta, mas hoje esqueci-me por completo, as mãos carregadas de filha, carteira, documentos e banana tornaram essa uma tarefa, mais uma e em demasia, para um cérebro desleixado e “deixa p’ra lá” como é o meu, que anula inconscientemente as tarefas que me fariam entrar em overload!
Ela entra sempre à vontade dela, faz o serviço todo, nunca deixa nada para trás… e quando chegamos a casa… notamos sempre a limpeza da D.Cidália… um “cheirinho a fresco” como lhe chamamos.
Já estávamos a sentir a falta dela desde aquele dia em que ela ligou a dizer por meias palavras baralhadas e entrelaçadas que não ia puder trabalhar na quinta-feira, porque tinha feito uns exames, que ia fazer amanhã de novo e já a internavam na sexta-feira. Não ia puder vir. Lamentava e pedia desculpa. Depois, ficou de vir a semana passada, mas novamente pediu desculpa e faltou. Dessa vez mandou mensagem de manhã… a dizer que tinha tido uma noite péssima e que estava no hospital a soro e possivelmente iria levar uma injecção para as dores… Fiquei preocupada. Afinal de contas, uma operação de remoção de um quisto no útero não seria assim tão problemática! Ou seria?!
Ao chegar ao patamar, lá estava ela. Já à minha espera, sempre com o mesmo ar jovem, simpático, de confiança… mas desta vez trazia nos olhos um medo. Um terror que lhe saía pela menina dos olhos em forma de tristeza. Perguntei como tinha corrido a Páscoa. Como estavam os seus cinco meninos?! A mais novinha, a de 4 anos, continuava com a doce rebeldia habitual nesta idade… e enquanto falávamos, arfando um pouco da caminhada apressada perguntei-lhe se já se sentia melhor… se o quisto tinha ido para análise, e que tal os resultados. Não parámos, disse-me apenas que já tinha começado a quimioterapia, que iria agora fazer uma vez, de duas em duas semanas.
Parei.
Olhando-a, a tristeza dela transbordou-lhe dos olhos, que já não tinham barreiras suficientes para a conter e em forma de lágrimas disse-me que o “quisto” se chamava sarcoma. Tinha dois centímetros. Tinham-lhe laqueado as trompas. E que pena que ela tinha… gostava tanto de ser mãe… e ainda não estava recuperada da morte do seu bebé, há um ano atrás. Estava à espera de novos resultados de biopsia, a fim de saber se o “sacana” era macho ou fêmea. Continuou dizendo trémula, que só esperava não perder aquilo… apontando com a sua delicada mão para os seus cada vez mais delicados cabelos.
De todas as minhas palavras, de todos os meus gestos e expressões… de tudo o que disse, queria dizer e fazer, só me ocorreu que: nada era suficiente. No recado que lhe tinha deixado em casa, como habitualmente faço, indicando todas as tarefas que ela teria que desempenhar ao longo do dia, tinha deixado um obs., juntamente com um ovinho da Páscoa para os seus meninos: “por favor não se esforce, não quero que se magoe nas limpezas. Só faz aquilo que conseguir fazer.”. Soou-me tão brando e inútil. Apeteceu-me ir a correr rasgá-lo, antes que ela o pudesse ler…
Nesse dia, fez tudo. Exactamente como habitualmente faz. A casa cheirava a “fresco” como habitualmente cheira quando é dia da limpeza dela, a roupa estava imaculadamente passada, os brinquedos da minha filha religiosamente arrumados. E encontrei-a a fazer hora extra, ainda a passar a ferro, porque tinha perdido uma hora à conversa comigo… de manhã no patamar do prédio.
Implorei-lhe que parasse, que se sentasse um pouco a conversar comigo, mas conversamos… ela com o ferro ainda ligado na mão e eu, em pé… à frente da tábua.
Perguntei-lhe se precisava de alguma coisa, se podia fazer algo por ela. Se tinha comido?! Se estava bem… Ela respondeu que estava feliz. Estava feliz por trabalhar. Tinha comido uma sopa. Queria trabalhar mais dias. Ter pretexto válido para sair de casa, validando a sua existência e fazendo uso dos seus 30 anos de vida, acumulados naquele corpo em recuperação, débil, deprimido e atordoado pelos 24 comprimidos diários que toma agora, todos os dias. 30 anos e um desejo… Perguntei-lhe se não tinha ajuda da família, com os meninos?! Afinal de contas eram 5, deviam dar muito trabalho. A mãe, estava fugida para o Canadá, porque o pai lhe bateu anos a fio, até que um dia, ela decidiu deixar a vida da ilha para trás, onde já não encontrava porto seguro em lado algum. Estava triste e queria voltar para ajudar a filha neste momento, mas não voltava com medo. A sogra, ajudava um pouco. A filha mais velha, agora com 14 anos também ajudava no que podia… incluindo nas buscas pela internet, procurando informação sobre o “quisto” sarcoma, que lhes tirava agora o descanso e lhes lembrava continuamente de que todos nós somos carne e osso, máquinas humanas, passíveis de defeitos e malformações e que ninguém, quer tenha 5 ou 50 milhões de Euros é imortal.
Agradeceu-me pelas palavras amigas. Prometeu voltar na quinta-feira. Tem quimio na quarta. Explicou-me que na ilha não há radioterapia, mas jurou voltar. Não gosta de faltar aos seus compromissos, disse-me ela!
Despedi-me dela à porta. Sorrimos os duas e a porta bateu.
"Espero por si quinta-feira, D.Cidália. Esperarei por si, todas elas!"
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