quarta-feira, 20 de maio de 2009

A Cabine


Não sei bem o que me levou a vir para este País… não sei bem como me ocorreu deixar o meu sítio de nascimento, coração e família para tentar a sorte num País alheio, em tudo tão diferente do meu, começando nos costumes e levando-me em pontapés na gramática de uma das línguas mais complicadas que já ouvi falar!
Estamos em Outubro e até hoje a temperatura neste País me continua a agradar. Não tem o frio gelado e branco do Inverno Russo, mas tem chuvas e ventos frios de gentes caladas e desconfiadas, que me olham sub-repticiamente num misto de desconfiança e pena sempre que lhes passo ao lado carregando em mãos mais uma filha que a vida me deu.
Natasha. Escolhi-lhe esse nome, porque a minha filha mais velha, que deixei na Rússia com a minha mãe, tinha uma boneca com a qual dormia e que apelidou de Tasha. Esta nossa “nova boneca”, a minha Erika, a mais velha, ainda não conheceu… mas vai conhecer um dia! Espero! Hoje tive leite para lhe dar, mas amanhã não sei como será… desde que nasceu temos dormido num casebre para os lados da Bela Vista, mas como o tecto é de papelão, em noites de chuva corro em braços com ela para fazer da cabine mais próxima um lar para nos acolher.
A Natasha dorme. É linda e loira como a irmã e ao afagar-lhe os cabelos, acaricio as duas! Hoje vai chover… antecipo as pingas pelo tom acinzentado que começa a cobrir os céus lusos e recolhendo uma pequena trouxa de roupas e coisinhas nossas de haver e ter, corro para a cabine familiar. A minha filha tem medo da chuva e chora assustada quando os céus rebentam! Queria tanto um lar para lhe dar! Queria um marido melhor também e não um, que nos vendo em dificuldades tenha proposto vender a nossa filha! “Ainda nem a conheces”, dizia ele para me convencer… “Vendemo-la agora que é bebé e pagam mais… e assim também não lhe ganhas carinho!”. Fugi, lembrei-me agora o porquê de estar sozinha nesta cabine telefónica e parece-me tão melhor agora! Canto-lhe em russo uma musiquinha de embalar e quero imaginar que tenho moedas no bolso e ligo para a Rússia ficando a cantar para a Erika e para a minha mãe também. No outro dia, numa das casas onde por vezes faço horas, uma das poucas, que me aceita a trabalhar com a bebé, vi de relance na televisão uma Rússia, que em nada me lembra já a minha… “Nazdarovia”, dizia a Senhora da casa, recostada no sofá, enchendo-se de bolachas de chocolate e lamentando-se das varizes nas pernas, que não acusa nas tardes de compras e chazinhos de Sintra.”Nazdrovia”, corrigi eu, sem ela se aperceber e sorri, porque mesmo ignorando o significado da palavra, a senhora acaba de me desejar Saúde!
Os dias vão passando e as minhas tarefas ocupam-me o tempo, concentrada apenas na ideia de ter o suficiente para mandar para casa, fugir ao meu marido e ter um sítio para dormir com telhado em lata ou telha, para não ter que voltar a dormir na cabine, naquele aquário de comunicação interdita, que nos torna espelho da miséria aos olhos do mundo e alvo dos olhares de soslaio de quem não quer saber, ou querendo nada faz.
Hoje estou nostálgica… tenho saudades de casa e do meu idioma. E talvez por isso tenha aceite o convite de uns amigos russos, que também estão cá, e que prometendo ajudar-me com a bebé e dar-me esta noite um prato de comida quente, me levaram a aceitar algo que não é bem aceite no meu País, “a esmola”. Ao chegar todos nos recebem na nossa língua materna! Fiquei feliz. Conto-lhes a minha situação, mas a única sugestão é… entregar a minha filha para um casal de patrões criar. Nego. Não a vendi, não a vou entregar! Explicam-me que seria temporário, só para poder trabalhar e ganhar mais dinheiro, mas saio pela porta a correr! Não cheguei sequer a provar a sopa quente que tinham preparado para o jantar!
A fome aguento-a bem, desde que a menina tenha que comer. Da Erika, a minha mãe trata, da Natasha tratarei eu.
Passou mais um ano e a minha menina, agora quase com dois, fica doente. Em mais uma das muitas noites na nossa cabine coloco-lhe a mão na testa e vejo que está a ferver. O meu coração aperta e procura nas ruas algum olhar de quem me possa ajudar! Não posso procurar a senhora para quem trabalho, não a quero transtornar, não vá ela despedir-me para não ter que me aturar! Ninguém gosta de viver dramas pelos outros, que nos poderão fazer acordar para a nossa própria condição humana. Lembro-me dos meus amigos, dos seus conselhos, dos seus patrões e prometo a nós as duas, que amanhã a entregarei para que a tratem bem. Será temporário, prometo. Esta noite, deixo-me acolher nesta nossa cabine, mais uma vez, talvez na última noite em que será nosso porto de abrigo. Canto-lhe a canção de embalar e esqueço por momentos a febre e a tosse, o nariz a pingar e o meu coração que chora!

As "sem-Razões"...


“Deixa a Vida me levar, Vida leva eu…”, porque comecei a semana assim. Em mood de relax total harmonia e serenidade. Uma paz imensa perturbada apenas por uma ligeira neura de origem desconhecida, que me perturba até ao meu mais fundo e íntimo sentimento e me leva a encarar a vida com um misto de tranquilidade e apatia que não me deixam reagir!
E muitas vezes é mesmo assim, esta neurinha “de domingo” chega sem avisar, mesmo a meio da semana para nos fazer lembrar de que é a vida que nos leva e não nós que levamos a vida!
Porque chega um dia que nos troca as voltas e nos faz encarar a Vida como móbil e não móvel. E é assim, que numa quarta-feira, mais uma, de trabalho e felicidade em tudo igual a todas as outras eu deixo a vida “me levar”…
Não há pior do que quem se queixa de “barriga cheia”, até mesmo para o próprio queixoso, que na maior parte das vezes nem percebe muito bem do que se queixa exactamente! Mas “há razões que a própria razão desconhece” e é assim que me encontro hoje, em plena tempestade de harmoniosa neura, lavada por uma revolta de a não entender e deixando-me levar pela vida!

Ainda assim e sem inspiração, escrevi estas palavras, para justificar a minha ausência e a falta temporária de móbil para a minha móvel escrita!

A quem veio procurar textos inspirados e reflectidos deixo um samba de leveza, porque mais nada lhes posso hoje deixar…

“Vida Leva eu…”